O poder dos algoritmos: uma visão bourdiesiana

Sócrates afirma, no primeiro capítulo da República de Platão, que existem três maneiras de receber um pagamento: dinheiro, honra, e, por fim, escapar de algum castigo. É justo afirmar que, passados mais de dois mil anos, pouco mudou neste sentido. A notória diferença é o método: na era dos dados, algoritmos, e influencers, delega-se a responsabilidade da atribuição de alguns destes pagamentos, mais comumente da honra (agora, quem sabe, na forma de likes), para um conjunto de instruções de computador. Contudo, do tempo dos filósofos clássicos para hoje, o entendimento humano de seu próprio comportamento social foi explorado e modelado de novas maneiras, e estas podem e devem ser aplicadas na era dos dados e inteligências artificiais.

Parte-se, então, de um princípio que, apesar de parecer óbvio, pode levantar questionamentos: algoritmos exercem poder social. Ao tomar decisões de exibir ou não determinados conteúdos, oferecer ou não certas vagas de emprego, ou ainda, conectar ou não pessoas a outras pessoas, esses agentes virtuais realizam sua influência na sociedade e interferem diretamente na vida daqueles que dela participam. Ainda mais preocupante é que, muito embora exista um aparente controle dos criadores dos modelos sobre suas criações, é grande o número de eventos indesejados, quando as ações de filtragem, classificação, seleção e predição mimetizam comportamentos considerados ruins pela sociedade, como por exemplo desfavorecimento de diversidade racial, de gênero ou de classe social. Desta forma, os algoritmos estariam copiando até as práticas mais repulsivas presentes no ambiente social atual.

Para entender melhor este panorama, é possível recorrer à uma das mentes mais proeminentes no ofício de trazer luz ao funcionamento da sociedade moderna: Pierre Bourdieu, sociólogo francês do século XX. Seus conceitos de campo, habitus e meta-capital são extremamente úteis, capazes de modelar grande parte do ambiente social virtual e explicar a distinta influência que os algoritmos modernos têm na construção deste.

Através de paralelos simples, desvela-se a materialização dos conceitos de Bourdieu, ironicamente sólidos e visíveis no espaço virtual. As famosas “áreas de interesse” das pessoas, juntamente com seus círculos sociais (ou “conexões”), presentes em redes sociais e outras mídias modernas e controladas através de seus algoritmos, se tornam espaços de lutas pela legitimação das diferentes representações do mundo, ou seja, campos sociais, conforme definido por Bourdieu. Em outras palavras, campo social é um conjunto de indivíduos com interesses em comum e, ao mesmo tempo, o campo de batalha onde eles lutam por legitimação e consagração de suas posições. Hoje se pode observar nas plataformas sociais, em tempo real, infindáveis campos e seus participantes – profissionais do direito, da mídia, praticantes de esportes, treinadores de cães, cozinheiros, políticos, gamers e assim por diante – e as lutas específicas de cada campo. A disputa por espaço em mídias tradicionais – jornais, revistas, televisão – além de outras formas de acúmulo de capital social, se transforma, adotando uma roupagem tecnológica. Durante todo o tempo os participantes disputam por visualizações de seus posts, pelo aumento de seguidores e pelo bom posicionamento nos feeds de informação, troféus que indiscutivelmente sofrem influência direta dos processos automatizados de relevância e recomendação.

Em outro plano de análise, é sabido que as disposições dos indivíduos, ultimamente demonstradas por suas ações sociais no presente, são incorporadas ao longo da vida por suas experiências individuais e coletivas. Bourdieu denomina este conceito habitus. Ora, se o habitus se consolida pela socialização e suas especificidades individuais, é óbvio presumir que, em indivíduos formados no mundo contemporâneo, no qual as interações sociais são em grande parte intermediadas por plataformas virtuais, as ações sociais no presente podem ser um resultado direto da seleção de conteúdo feita por algoritmos, que limitaram ou não a exposição do mesmo a certas experiências, por um período considerável de sua vida. Note-se que esta seleção de experiências já ocorre naturalmente em todos os agentes sociais, através das diversas religiões, etnias e outros muitos grupos; porém, parece justo afirmar que, pela primeira vez na cronologia humana, a seleção é feita por agentes tecnológicos dos quais apenas um punhado de indivíduos, comumente de instituições privadas, têm controle, se é que ele existe de verdade.

Tudo posto, é notável o grau de poder concedido aos sistemas de dados atuais, seja para moldar a sociedade ou a consequente realidade de cada um. Não é estranho que estejam nascendo novas formas de ativismo, voltadas exatamente para que seja garantida a maior transparência possível na operação destes agentes que são ao mesmo tempo tecnológicos e sociais, além da correção de funcionamentos indesejados, como já mencionado. É real a possibilidade da normalização e da propagação de comportamentos ligados ao racismo, à misoginia e outras formas de degradação social. Isso se torna mais claro quando se olha para as estruturas e relações em redes sociais e de consumo através dos olhos reveladores de Bourdieu. Não se pode ignorar este novo ativismo, pois pode se tratar da única forma de construir, agora, uma sociedade melhor no futuro.

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